Sobre a imortalidade dos fungíveis - ou: Qual marca estamos deixando no mundo?
- Rafael Priveiro D'Abruzzo

- 7 de ago.
- 5 min de leitura
Recentemente tenho me questionado acerca do que torna uma pessoa singular, única. "Sui generis", no linguajar pseudointelectual rebuscado dos que apelam à autoridade do latim (lingua morta, por sinal, num paradoxo com o objetivo deste texto).
Numa realidade cada vez mais abarrotada de informações e vieses, o questionamento que me faço não é gratuito. Se o que nos define enquanto indivíduo são nossas características individuais e essas características individuais advém da formação histórico-cultural que tivemos ao longo da vida, podemos dizer que o nosso meio é o que nos torna singulares? Mas nosso meio não seria semelhante ao de tantos outros que coexistem em nossas respectivas bolhas culturais?
Mais do que isso: até que ponto nossa semelhança uns com os outros não nos torna substituíveis ou, no termo que usei no título deste texto, fungíveis? Aproveito esta palavra que tomo emprestada de minha formação acadêmica: fungível é aquilo que pode ser substituído por outra coisa de igual espécie, qualidade, quantidade e valor. Ora, até que ponto não somos todos fungíveis entre nós mesmos?
Parece um questionamento deprimente e talvez até o seja, mas entendo pertinente num momento como o que vivemos. Avaliando os últimos meses, observamos o avanço de uma pandemia, a banalização da morte de milhares de pessoas, a transformação da tristeza e do luto em estatística e o negacionismo avançando a pleno vapor. Em meio a todo este caos, tentamos manter a normalidade, tão preciosa para nós, humanos modernos. Tentamos manter pequenos rituais que dão a sensação de "está tudo bem": aquele filme no final de semana, aquela cervejinha depois de um dia cansativo, aquele hobbie que tentamos manter em meio à confusão de horários e da sensação de que todo dia é igual.
Com tudo isso acontecendo em um pano de fundo confuso, digno de um filme de David Lynch, encaramos outra faceta da sociedade na qual vivemos: a imortalidade. Aqui, não me refiro ao sentido religioso ou mitológico de viver para sempre. Isto cabe à crença de cada um. A imortalidade à qual me refiro é a continuidade de um legado, aquilo que faz com que não sejamos esquecíveis. É o que encontramos em comum entre Buda, Jesus, Platão, Julio Cesar, Napoleão, Gandhi e tantos outros. É o legado que nos permite identificar alguém como "importante". Alguém que sai da vala comum e merece um lugar de destaque no cemitério, num belo mausoléu. Alguém que vira nome de rua, nome de monumento. Os imortais.
A maior parte de nós não será imortal. Este que vos escreve, mesmo em seu maior delírio de grandeza, não espera viver mais do que poucas décadas após a morte. É o que acontece com a grande maioria de nós: vivemos, morremos, sobrevivemos na memória de nossos filhos, netos, bisnetos e, quiçá, nossos tataranetos. Após isso, sumimos como aquele personagem triste no filme "Viva - a vida é uma festa".
A perenidade do indivíduo ganhou uma poderosa aliada: a internet. Aqui podemos deixar nosso legado a quem quiser ler, durante (talvez) todo o tempo que a humanidade durar. Aqui temos voz, aqui podemos ser lidos, ouvidos, estudados. Mas seremos? Nós conseguimos distinguir dois imigrantes que viveram há 200 anos neste país, trabalhando na lavoura ou em qualquer trabalho considerado "menor" atualmente? Conseguimos encontrar uma voz familiar no mar de rostos uniformes das fotos antigas dos navios de refugiados? Quem são aquelas pessoas? Quase ninguém sabe. São todos muito parecidos. Se trocarmos seus rostos de lugar, quase ninguém perceberá. São todos fungíveis.
Somos mais de 8 bilhões de humanos, atualmente, neste planeta. Quem parará suas vidas atarefadas daqui a duzentos anos para pesquisar sobre algum de nós? A internet nos torna acessíveis, mas não imortais. Em duzentos anos, seremos todos acessíveis, mas todos similares à geração futura. Não serão facilmente distinguíveis o João do José, a Maria da Joana. Somos todos muito parecidos entre nós, frutos do nosso tempo, do nosso "zeitgeist". Somos todos fungíveis.
Para alcançar a imortalidade, precisamos nos destacar. Deixar um legado, uma marca. Uma obra. "Plantar uma árvore, escrever um livro, ter um filho". Pois bem, ano passado plantei uma árvore, publiquei um livro e este ano tive uma filha. Isso me torna imortal? Ou apenas prolongará minha existência por alguns anos em comparação a outras pessoas? Ou nem isso? E por que a imortalidade tem que ser o objetivo da vida de tantas pessoas?
O que nos torna singulares, ou únicos, ao meu ver (e respondendo ao questionamento que abre este texto) é nossa massa de características não apenas histórico-culturais, mas psicológicas. É apenas somando nossa origem e nossos fundamentos àquilo que absorvemos ao longo da vida que nos destacamos dos nossos pares. "Eu sou eu e minhas circunstâncias", como diria José Ortega y Gasset. Assim como todos os meus colegas de ensino médio eram todos parecidos, com dúvidas e medos similares típicos da adolescência, conforme os anos passam vejo que a vida tomou um rumo diferente para cada um. As rugas de preocupação surgiram em lugares diferentes, assim como os medos se moldaram e as alegrias se modificaram.
Talvez seja o momento de deixar de tentarmos ser imortais, de tentarmos deixar de "marcar o mundo com nossa presença". Talvez seja o momento de viver com mais calma, "take it easy", "YOLO" se você quiser se instagramizar. Talvez seja o momento de abraçar nossa mortalidade, compreender que nossas expectativas talvez estejam altas demais conosco mesmos e viver o que nos resta de tempo em paz.
Ou talvez eu esteja errado e esta reflexão seja apenas fruto de uma geração cansada de tantas expectativas, cansada de ter que fazer textão em rede social, cansada de ter que ser empreendedora, investidora, influenciadora e humana ao mesmo tempo. Talvez eu esteja apenas sucumbindo ao "espírito da minha geração". Isto, talvez, alguém daqui a 300 anos diga numa palestra sobre o início dos anos 2000, assim como estudamos longos períodos históricos numa nota de rodapé em algum livro de colégio. Lá, nesta hipotética palestra, seremos todos muito parecidos aos olhos dos estudantes: atrasados, ignorantes e obtusos, como os renascentistas viam os medievos. Seremos apenas rostos num navio de imigrantes e não será possível distinguir você de mim.
Enquanto lutamos contra o esquecimento, não podemos deixar de olhar para o que dá sentido às nossas vidas agora: seja nossas famílias, amigos, trabalho e/ou prazeres. Não nos preocupemos com nossa perenidade em vida. Por ora, contentemo-nos em viver e deixar uma marca positiva nos que estão perto de nós. A vida é curta demais para atalhá-la com nossas ansiedades tão igualmente encontráveis em quase todos nós (já falaram, inclusive, que a ansiedade é o mal deste século. Vejamos se o pessoal de 2099 vai concordar). Se tentarmos abraçar tudo o que esperamos de nós mesmos, corremos o risco de engolir nossa própria identidade com essa fome de conquistas e expectativas. E se perdermos nossa identidade, esse amálgama de características tão singulares, o que nos restará? A fungibiliade. Aí deveria estar nossa verdadeira preocupação: não em morrermos, mas em sermos substituíveis. Afinal, a mortalidade é a condição intrínseca da humanidade. A imortalidade aqui é apenas figurativa.
Não lutemos, pois, contra o esquecimento. Lutemos contra a mediocridade.




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